domingo, 3 de março de 2013

NO SEMIÁRID DO NORDESTE, OLIGARQUIA POLÍTICA E ECONÔMICA É MAIS DEVASTADORA QUE A SECA

Seca
A seca no Semiárido nordestino, que, de tempos em tempos, mobiliza as atenções do País, tem duas faces, segundo o professor José Jonas Duarte da Costa, da Universidade Federal da Paraíba. Uma delas – marcada pela ausência de chuvas – é a face natural. A outra é a socio-histórica, que ele considera “muito mais grave e devastadora”.
O professor assegura, que, ao contrário do que muita gente pensa, a região não tem sido esquecida pelo Estado brasileiro. Volumes consideráveis de dinheiro têm sido sistematicamente enviados para promover o desenvolvimento do Semiárido. O número de siglas de projetos e empresas envolvidos com a questão também só aumenta. Entre elas aparecem DNOCS, Codevasf, CHESF, BNB, Sudene, ProHidro, PAPP, Projeto Sertanejo e outros.
O problema é que o dinheiro não chega a quem mais precisa: é embolsado pela oligarquia econômica e política local. Para piorar o quadro, os projetos públicos escolhidos não são adequados para a região.
Costa é doutor em história econômica pela USP e mestre em economia rural pela Federal da Paraíba. Além de ensinar, atua como pesquisador visitante do Instituto Nacional do Semiárido (Insa). Na entrevista abaixo, ele afirma que a região nordestina poderia ter um elevado grau de desenvolvimento se os projetos fossem adequados e os recursos não fossem embolsados pelas oligarquias.
O Semiárido enfrentou em 2012 um dramático período de estiagem. Em recente artigo sobre a região, o senhor atribuiu os problemas a políticas equivocadas de combate à seca.
Não se trata apenas de equívocos, mas, sobretudo, de projetos e políticas que serviram a interesses menores, de grupos econômicos dominantes, de características oligárquicas ou empresariais. Tais grupos sempre se beneficiaram de modelos economicamente concentradores e socialmente excludentes. Para mim, essa é a questão chave: os projetos e políticas públicas, além de equivocados, obedeceram a interesses privados, minoritários, excludentes.

Isso ocorreu mesmo com a Superintendência de Desenvolvimento Econômico do Nordeste, a histórica Sudene?
Sim. A exceção foi a atuação da Sudene durante os governos de Juscelino a Jango. Dirigida por Celso Furtado e um grupo que ele formou, até o golpe de março de 1964, aquela superintendência seguia a lógica de atrair investimentos e democratizar o acesso à terra e à água, por meio da reforma agrária. Depois de Furtado esqueceram a reforma e, consequentemente a democratização da terra e da água.
Os recursos públicos não chegam à população mais necessitada?
Não chegam. Infelizmente. Numa sociedade desigual como a nossa, eles beneficiam os mais poderosos em praticamente todos os projetos.
Isso ocorre atualmente?
Estou falando da realidade de hoje. Na Paraíba, o governo estadual tem feito enorme esforço para garantir o fornecimento de ração aos agricultores familiares, mas os grandes fazendeiros e empresários se apossaram do programa e são eles quem, de fato, têm acesso à ração animal. O mesmo tem acontecido com o programa de distribuição de milho que o governo federal subsidia: só os produtores com melhores condições obtêm acesso ao programa.
O que seria necessário mudar, na sua avaliação?
No plano político seria preciso quebrar a estrutura de poder oligárquico que se alimenta da seca. Por mais paradoxal e triste que seja, ainda é comum assistirmos a políticos profissionais que se beneficiam e tiram proveito eleitoral da situação caótica. Aparecem como defensores dos flagelados e oprimidos. Criam logo uma SOS Seca e tornam-se garotos midiáticos, preparando as bases eleitorais para as próximas eleições, prometendo “vestidos a marias e roçados a joões”, como dizia a música de Gilberto Gil em 1968.
Como romper esse círculo?
Romper essa estrutura política significa eleger outros interlocutores para um diálogo franco de construção de alternativas de convivência com a seca. Não se pode aceitar mais que os políticos locais sejam os intermediários entre os projetos de enfrentamento da questão e a população que espera os chamados benefícios. É necessário criar mecanismos de democracia participativa efetiva, onde o povo organizado participe dos fóruns de decisão e dirija os processos de execução de políticas públicas. Não é fácil, mas é preciso fortalecer as organizações populares, os movimentos sociais, setores da igreja, sindicais.
Essas organizações alternativas também apresentam problemas e dificuldades.
Existem vícios e problemas na execução dos projetos, mas, sem dúvida, de longe, com muito menos casos de corrupção, desvio de conduta e descaminhos de projetos. A experiência da ASA (Articulação do Semiárido) com as construções de cisternas de placas, cisternas calçadão, barragens subterrâneas, etc, é um exemplo de eficiência. No plano mais amplo, é preciso montar uma infraestrutura produtiva em função das condições peculiares da região.

O senhor fala em convivência com a seca. Isso é possível?
Cerca de dois terços das terras do planeta estão em regiões de clima árido ou semiárido. E em muitos desses lugares as pessoas vivem bem, muito bem. O nosso semiárido é o que mais tem chuvas no mundo e um dos que apresentam maiores potencialidades. É preciso deixar claro que o Semiárido não é só pobreza, miséria e seca. É uma região com dificuldades e desafios, mas com potencialidades enormes, muitas belezas e riquezas. Conhecemos produtores, em pleno Cariri paraibano, região das mais secas do Brasil, onde não chove há praticamente dois anos, que ainda não sentiram o drama da seca. Na realidade sentiram mais o efeito da dizimação da palma forrageira pela praga da cochonilha do Carmim do que da seca. Esses agricultores aprenderam a viver em zona seca, semiárida, com pouca chuva. Vivem com muita dignidade e altivez.
Como conseguem?
No período das chuvas produziram e armazenaram alimentos para os seus rebanhos – e até agora dispõem de reservas para alguns meses. Também aprenderam a estocar água para utilizar nos períodos de longas estiagens. São produtores de agricultura familiar que não deixam a desejar em produtividade, eficiência e qualidade a nenhum produtor das regiões mais chuvosas do Brasil. Produtores com média de 20 litros de leite por vaca em plena seca. Apenas montaram infraestrutura tecnológica adaptada ao semiárido. Não transplantaram modelos produtivos de outras regiões. Assim como os suíços se preparam para o rigoroso inverno, com nevascas e gelo que matam tudo em suas terras, assim como árabes e judeus se preparam para as adversidades climáticas, os sertanejos sabem se preparar para a vida sob as condições climáticas próprias dessa parte do Brasil.
O senhor fala em potencialidades da região. Elas não são exploradas?
Não. E são muitas. Um exemplo: poderíamos exportar para todo o Brasil energia elétrica a partir da energia solar. Outro exemplo: poderíamos exportar proteína animal, como se vê em outras áreas semiáridas do mundo, e fornecer queijos finos de leite de cabra. Temos cerca de 90% do rebanho caprino nacional, plenamente adaptado ao clima local.
Chama a atenção, no artigo que escreveu, a lista de siglas de programas para a região.
Lembrar essas siglas é quase lembrar a história do Brasil. O IFOCS, que virou DNOCS, atuou na perspectiva de uma solução hidráulica para a seca. Construiu uma infraestrutura de açudes e barragens que deu à região um razoável suporte hídrico. No entanto, desmentindo o paradigma da solução hidráulica, nos anos 80, quando o Semiárido já dispunha de todos os mananciais que dispõe hoje, veio a crise da cotonicultura, que, articulada com a crise econômica dos anos 80 e as secas, provocou o maior fluxo migratório da história. Cerca de 5 milhões de sertanejos deixaram os sertões secos do Brasil.
Esse paradigma hidráulico foi abandonado?
Embora desmoralizado, setores políticos hegemônicos ainda tentam resgatá-lo no Nordeste, certamente para tentar se beneficiar.
E as outra siglas e políticas públicas?
O BNB (Banco do Nordeste do Brasil) tornou-se o maior latifundiário do Nordeste, pois é credor de uma dívida impagável por parte da grande maioria dos proprietários de terra da região. Também tem CHESF, Codevasf e os programas de emergência: Projeto Sertanejo, Reflorestamento com Algaroba e outros. Todos tem sempre o mesmo objetivo: desenvolver o Semiárido. O problema é que todos se baseiam em modelos importados, que não levam em conta as as potencialidades da região.
De que maneira os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, afetam a região?
O Bolsa Família funciona como política compensatória diante da incapacidade do Estado para superar a pobreza, o desemprego e a miséria, características do sistema capitalista, especialmente na sua periferia. Para uma efetiva distribuição de renda seria necessário alterar o modelo que privilegia o lucro exacerbado e o acúmulo de capitais. O atual governo, embora tenha reforçado os programas sociais, não alterou a estrutura espoliativa do trabalho no Brasil. Não mexeu nos privilégios.
Mas o programa não teve impactos?
O Bolsa Família teve e tem impactos importante na redução dos índices de fome e miséria nos sertões semiáridos. Ele também propicia uma circulação monetária que cria uma espiral virtuosa em economias locais, onde predomina a baixa renda. Nos sertões, além de reduzir a miséria, levou ao escasseamento da mão de obra, melhorando os padrões salariais para uma parcela das classes trabalhadoras de rendas baixíssimas. Esse é um impacto perceptível. Por outro lado, gera um processo que pode se voltar contra a própria classe trabalhadora, que tende a acomodar-se. Como vivemos um momento de inflexão das lutas sociais, o Bolsa família que alimenta o trabalhador é o mesmo que o paralisa na luta por sua emancipação, o domestica politicamente, para a reprodução da exploração sobre o seu trabalho.
E do ponto de vista político-eleitoral?
Os programas sociais têm reflexos direto na popularidade do governo. Quem, como eu, viveu a infância e juventude nos sertões nordestinos, não esquece as cenas de fome e desnutrição, inclusive tendo a morte como companheira próxima – algo comum nas famílias dos agricultores pobres. Hoje ainda existe muita fome, miséria, desnutrição, mas não comparáveis ao que havia naqueles tempos. A grande popularidade do governo se explica porque, embora de um lado realize os sonhos dos capitalistas que “nunca antes na história desse país” acumularam tanto, de outro, promete acudir parte dessa população, historicamente desassistida, ainda despolitizada e que, sob essas condições, só poderia reagir agradecendo.

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